Sem Título

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Desde sempre nunca fui uma unanimidade, isso é que não!

Singular o ver e ouvir, tecendo e encucando ideias que, por dá cá aquela palha, se tornavam ilhas cercadas de espantos por todos os lados.

Hoje, sou uma velha e a ilha que continuo sendo parece não saber encostar barcos.

Ando muito falha de ecos… sinto pena… Mas minhas águas ainda fazem espantos, minha fala, ácida por vezes, crítica sempre, sacode os alicerces da catedral “velhice” cuja personagem, em ato falho, dizem, é sóbria, doce, sábia e grata pelos restolhos de sol e regalias da chuva.

Nada de pensamentos próprios sobre temas controversos, movimentos de corpo que, pasmem, ousem ocupar espaço, esqueça a dança das horas que almejem significado e sentido.

Velhinhas são açucaradas senhoras cercadas por felicidadezinhas…

Tudo muito inho, bem pouquinho e sempre, ela a senhorinha, muito, muito agradecida pela pouca ou nenhuma vida.

Não para mim, não em mim, não por mim.

Desculpe o mau jeito…

Mas, ainda sou eu, e isso para além de um corpo, velho e gasto pelo bom uso, quer dizer muito.

Muito tempo, muita história, muito do meu fazer no mundo, criação de viver em colorido, rebordosas de ser, uma vida parida na ousadia de mirar longe, mirar de novo, ralar os joelhos, cravar as unhas nas escarpas de outros corpos, no gozo livre dos que pisam as margens e anseiam.

Não.

Não, porque minha arte está viva e pulsa nas telas, meus marionetes, réplicas de meus tantos eus, destilam poesia e beleza entre os dedos engelhados de minhas mãos que são como teias.

Não, porque as plateias dos impossíveis teatros estão repletas e minha voz ecoa despertando duendes, fadas, xamãs, orixás e bruxas nos auditórios repletos de blasfêmias e heresias, tão ao meu gosto, burlescas, preciosas e vadias.

Estou entulhada, sou uma cômoda antiga, no canto de uma sala sem janelas. Sou abundante acervo de palavras, pensamentos, sons e formas que, em ruidosa azáfama transbordam de minhas gavetas.

Ressoam como chuva miúda no lajedo os pensamentos que ainda não sei, a arte por debulhar em minhas entranhas, a curiosa busca que não cessa, enquanto eu grito o silêncio.

Sou uma cômoda antiga no canto de uma sala sem janelas e minhas gavetas, grávidas de minha arte, fartas em meus seios túrgidos de delírio e escárnios, já não podem calar, fechar em seu devir enlouquecido.

– Estás velha, estás franzina, queda, sossega e sê grata, é o que basta!

Não.

Não para mim, não em mim, não por mim.

Antes, findo.

Me faço poeira cósmica, desatomizada e livre, vertical infinito a descambar para dentro de mim, buraco negro, delirante de gôzo, parindo estrelas.

Não, desculpe o mau jeito, não para mim, não em mim, não por mim.

Você não me ouve, mas…

Eu grito o seu silêncio.

Texto e ilustração de Regina Amorim


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