Abanando as Cinzas

Sou uma velha de setenta e oito anos e permaneço surpreendida com a vida, curiosa e destemida. Busco, ainda, conhecer-me, aprender de mim, aplaudindo ou corrigindo, sempre.

Leitora contumaz, viajo nos livros, cheiro-os avidamente enquanto leio; perco-me em meio as multidões a construir certezas e permitir assombros.

Gente que sou, em meio a outras gentes, derivo.

E foi perdida em um manifesto de mulheres lésbicas (porque sempre estarei onde estiverem os inconformados e livres, os que abrem passagem aos trancos e barrancos) que me achei.

E assim, no espanto de viver, dei de cara comigo, cheia de porquês e não me toques, diante da fala forte, ousada e crua daquelas mulheres que gritavam a plenos pulmões, seus cânticos nada “comportados”, expondo corpos e desejos.

Algo dentro de mim recolheu-se em rendas e fitas e achei agressivas as mulheres e banais seus versos e desejos.

Além de banais, expostos como não poderia acontecer. São sentimentos e desejos que, aprendi, pertencem à esfera privada e lá devem ficar em segredo.

– Ah! Desse jeito, meninas mal educadas, não vão conseguir aprovação para suas lutas, que, reivindicam lugar e respeito.

– Ai, ai, ai… meninas levadas!

Mas, lá vem a vida e suas surpreendentes “esquinas”, você vira e …

Foi no colo de Bell Hooks, a cheirar seu precioso livro “Erguer a Voz”, que, de repente, me dei conta de meus mofados limites.

Fui criança no século passado, aprendi a calar e treinei com afinco a fazer uma cuidadosa edição interna – texto revisado e o “restolho” empurrado goela abaixo para o privado. Já o texto público, cuidadoso e limado como deve ser a fala de uma menina.

Tecia-se a fala de uma mulher.

O que era a fala de mulher?

Ao sentar, joelhos juntos; ao falar, tom suave e palavras neutras, escovadas pela polidez.

Em público, a farsa da adequada senhora, lá pelos meus dezoito anos. Casada, silenciosa… Mas, pulei fora do cavalo do príncipe encantado e aqui estou, um tanto atordoada ainda…

Com o livro de Bell Hooks nas mãos, levantei os olhos perplexa, num jato frio e claro em minha percepção, eis a menina que eu fora, bem-comportada, obediente, mas que todos achavam meio estranha, bem diante de mim. Desafiava-me, ambas confusas.

Tomei-a pela mão, emocionada e ofegante e, juntas, voltamos ao manifesto das mulheres lésbicas e fomos indecorosamente livres entre os ecos de seus cantos malcomportados.

Cúmplices nos olhávamos, eu e ela, nossas vozes altivas a somar com aquelas mulheres fortes, inteiras em seus desejos, em seus corpos de largos gestos e joelhos abertos como bandeiras desfraldadas.

Então foi isso…

A menininha ensinada a calar, que eu fora, ainda sentiu medo da punição que viria por não se comportar como uma “senhorita”.

Naquele dia, entre os manifestantes, obedeci e calei. A lição bem aprendida latejava ainda lá no fundo. Não pude compreendê-las, assustavam-me aquelas mulheres, não as enxergava em mim.

Era assim que nos “tornávamos” mulher nos anos 1940, 1950…

Sou uma velha de 78 anos e bendigo a vida que nos arma surpresas de ser, bendigo a minha teimosa curiosidade que me ensina a olhar de novo de outro jeito, sempre de outro jeito…

Ergo a voz bem alto e canto com elas, as fortes mulheres que me ajudaram a ver de novo.

Canto com elas, canto com elas…

09/06/2023

Texto e ilustração de Regina Amorim


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