Relevâncias

Desfeito o olhar

Desfeita a paisagem

Desfeito o gesto que não fiz porque vários

Em frenético mover-me, eis-me, no mesmo lugar

O mundo, a que ansiamos conter, entre contradições e espasmos dolorosos, não aceita ordenação, não reconhece cercas, não habita espaços.

O mundo é a perplexidade do irremediável perdido.

Vivemos o esforço inútil de alimentar certezas, olor ácido em nossas narinas, a arderem nossos olhos de incandescente argila.

No oceano de todas as possibilidades, o barco partido que somos e é cada um de nós, hasteia, alvo crânio, bem ao topo, a bandeira do assombro, na calvície de uma abóboda celeste.

Humanidades à deriva, sem contrários porque jamais houveram, sem certo porque nunca errado, sem razão porque duvida.

Nossos vocábulos risíveis são fósseis para uma arqueologia do impossível: civilização, barbárie, primitivo, culto, moral, amoral, imoral, longe, perto, pequeno, grande, masculino, feminino, etc, etc.

Paradigmas, conceitos, abrigados pelo ilusório teto de nossa consciência, em exíguo espaço, onde amontoamos a copular com o medo. Ali, miramos por uma fresta pequenina e a luz fragmentada que nos chega, nos enche de empáfia e certezas que não nos permitem rompimentos, explodir em fogo e gelo porque, tolos, nos julgamos a conter o mundo, cegos no banhamos na difusa neblina.

A boa nova é cantada em silêncio para os que se dispõem a ouvir, seu som é o nada…

Somos nós e todas as outras formas de vida, sistemas abertos em permanente movimento.

Não “reagimos” ao “meio”, porque não existe meio; não “reagimos” ao que nos “cerca”, porque não existe “cerca” ou “o que cercar”.

Interagimos, perpassamos, fluxo interminável e incontido provocados pelos impulsos que sou eu e tudo, sou eu e aquilo que chamo de outro.

Não somos indivíduos, mas divíduos, na dança que fragmenta para unir, une para outra vez dilacerar. Nada permanece o mesmo por um infinito de segundo que seja, a dança se faz em movimento e deriva, achar e perder, saber e esquecer na memória do ilusório tempo.

Penso que dizer: – eu sou, é um ato de soberba e ignorância.

Sou várias, a correnteza em que me perco e me encontro para perder-me outra vez, me afirma e nega, concomitantemente, em tudo que penso ser.

Quando digo: – eu sou, já não sou…

Somos sistemas abertos, nos dissolvemos perdidos e encontrados no oceano que chamamos de “outro”, sístole e diástole… em abrangências fugidias.

Somos um infinito de combinações possíveis no impossível de nossa relativa experiência que, ao descuidar-se, liberta a cativa consciência e, só então, algo que nos ultrapassa, eclode em inimagináveis e provisórias eternidades.

Ousemos, a liberdade que nos desafia, provoquemos a primeira faísca, aquela que faça cinzas às nossas certezas.

Olhemos o novo com os velhos olhos que já não o são …

Texto e ilustração de Regina Amorim


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