Um Cisco no Olho do Tempo

Nos idos dos tempos que idos foram, estava uma ostra entre águas profundas distraída, quando, ao abrir-se descuidada, viu-se invadida por insignificante grão de areia. Nem prepotente, nem invasor, só um pequeno fragmento do que tudo era, meio perdido de si e da vida.

Incomodou-se logo o molusco ao sentir aconchegar-se ao corpo o tal grão de sensações e dores. Por incomodo que fosse ao ostráceo, parecia definitivo e nada prometia águas que o levassem para fora e para longe do leito macio que o acolhera a contragosto.

Fixava-se o grão de areia. Irrelevante seria dizer que, no mesmo instante, tantos outros grãos para tantas outras ostras, em tantos outros sempre o mesmo oceano, aproveitavam-se do ir e vir das águas e adentravam bocas úmidas, nem tão distraídas ou o que tudo isso significasse. Reagiu a ostra como pode e devia, reagiram… Tratou a pobre de tecer reclamos que, mistura talvez de lágrimas e prantos, deram de envolver o grão em molhados travesseiros poupando um tanto de dores ao corpostra que se inflamava e ardia. Crescido, o pequeno já grande tumor azulino era parte da ostra e, seu brilho ofuscava do dentro de tudo.

O humano corpo que tudo invade, o humano olho que tudo vê, a humana boca que tudo come, por lá passou e curioso, deu pela ostra, deu pelo brilho.

Tomou-o para si, chamou-o pérola, deu-lhe um valor e ficou rico. Impaciente não pode esperar que grãos intrépidos ao acaso, se fizessem “pérolas” no colo de doídas ostras. Tratou de domesticá-las a seu mando e fez pérolas “cultivadas” por seus delírios engenhosos.

Somos os incríveis seres que sabem captar a beleza, essa harmonia dançante que nos inebria e dá sentido ao fato de estarmos vivos e à deriva. O olhar humano cava competente o belo tecendo cores, luzes, sombras, conscientes e inconscientemente, ora partícula, ora onda. Visível e invisivelmente nosso olho pode não ver para ver finalmente. Ver beleza irremediável em todas as formas e expressões de vida eis o grande mistério. A ostra, doente do grão, princípio nervoso em promessa, fez reação, não fez pérola, esboço de emoção, fez sentimento.

Nós, humanos, e nosso torto olhar antropocêntrico, chamamos de pérola a dor da ostra e nos orgulhamos disso. Somos o grão de areia, o cisco no olho do tempo.

Texto e ilustração de Regina Amorim


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