Como um Vento

Não dá para saber se João Peitó tinha o mundo dentro de si de tal sorte que dele tudo percebia em ressonâncias, como se seu corpo fosse um sino… sino bom de boa forja fora na liga fervente de Penha Peitó que ganhou forma e destino.

Penha, mulher pequena de pequenas posses e pequena vida, fazedora de brancos nos azuis anil da lavação de roupa, tecedeira de verdes na hortinha que fazia engendrar nos meandros de terra alguma. Ia à lida da vida.

Surda desde sempre, falava e ouvia pelos cotovelos, sorria nos intervalos dos silêncios e sabia, certeira, todo o som que do mundo vinha.

À porta, aviso grande: BATA COM FORÇA E SERÁ OUVIDO _ é que Penha percebia grande todo o barulho no dentro oco do mundo, entendia.

Quando o chegado à porta, bem avisado, punha força na batida, a casa toda vibrava, tensionava, se excedia e elas, a Penha e a casa, feitas uma só … ouviam.

Espantava as gentes o tão fartamente ouvia Penha sem ouvir pelos modos de conhecimento que a todos cabia.

Homessa! Era lá do jeito dela, mas que ouvia, ouvia.

João Peitó, o filho, feito do dengo nascido do tímido arroubo com Justino Peitó, já refestelado no colo de Penha, dividia com umas margaridinhas poucas os apertos no casório dos dois.

E foi a se fazer a vida.

E no ir-se dos tempos duas dores de um cortar forte no peito. Foi-se de repente Justino levado da vida ainda mocinho, enquanto destino disposto, sem preguiça para tecer dor, mostrou à Penha que João, o seu menino, combinava com ela no seu jeito de ouvir não ouvindo, era surdo também.

Foi sendo em de pouquinho em pouquinho, até se calar de vez o túnel por onde passava o vento do ouvido _ assim Penha explicava o ocorrido.

E vai lá mãe e filho no apalpamento de um mundo muito pessoal, só dos dois.

Penha contava ao menino que as pessoas são como os casacos vestidos pelo avesso, onde os bolsos com suas coisinhas, quer dizer as importâncias, estão sempre por dentro, de fora, a vista, vai a banal de ser, era preciso dar conta de ver e sentir o vento que faziam. Isso era ouvir.

Pouca gente percebia e, assim, deixavam de dar vida aos sentidos que, tal e qual um violino afinado, fazem a música de cada viver.

_ E é mesmo! pasmava João que, com a mãe, aprendia a linguagem do vento…

Penha palmava a mão no peito do filho e com os olhos quietos ouvia e, respondia às vibrações das cordas novinhas do menino, música boa de ouvir.

Mostrava, Penha, rindo muito, a faceirice dos olhos, bolinhas agudas a rolar na esfera branca _ assim se ouve uma risada, olhe filho!

Já olho apertado, feito céu de vai chover, medo e tanto sentir se esparramava generoso no talo flor ligando mãe e filho, os dois floresciam, frutavam e se colhiam prazenteiros.

João aprendeu e costurou seus próprios saberes em meio a tanto viver e proseando com o tempo ia que ia.

Este era o João Peitó, o cara surdo que ouvia como os sinos repicando bem no dentro e sentindo o vento que era som para ele, claro e dadivoso.

E ia em sendo professor de si mesmo e fazedor de silêncios que todos, respeitosos, paravam para ouvir.

João Peitó, já agora vivendo seus outonos…



A minha frente, a janela em claridades, despenca despudoradamente na alvura funda do papel virgem de uma qualquer escrita que já não faço.

Súbito deu-se de calado João Peitó.

O personagem, que em mim e para mim dava-se farto, silenciou os olhos e quedou-se num jeito seu sem justificativas.

São, os que escrevem, velhas mansardas que guardam sombrios escaninhos que, por vezes, se deixam em porosidades trazendo à luz personagens.

Vem-nos dar ao sótão, ruidosos no arrastar de suas bagagens, lentos como insetos gosmentos, às vezes à pressa como urgências de se contar.

Impossível não dar por eles.

João Peitó chegou como uma ventania, ocupou e vasculhou como a incomodar aranhas adormecidas nos desvãos da minha cabeça.

Dei-me de simpatias e cumplicidades, logo tratei de dar-lhe forma e voz.

Íamos assim os dois a bom caminho, até que calou-se, desvaneceu-se…

Eis que João Peitó, filho de Penha e Justino Peitó, fita-me com uns olhos amarelos que se misturam às grades da janela e ao tampo da mesa em que, olhos grandes da folha em branco a olhar-me também.

Algo me faz compreender que sua presença, ainda que quase uma ausência, quer dizer-me que, talvez, queira desvencilhar-se do duro encargo de ser meu personagem tendo que dar-se a conhecer e ocupar-se de tantas veredas, encruzilhadas e ruas sem saída que juntos teimamos em percorrer.

E então, João, a que vamos? pergunto, a mão trêmula, a caneta, o papel.

Será que perdi-lhe a confiança ou foi o dom de letrar que deixou-me com os anos?!

Que é de João Peitó?

Seguem a fitar-me os amarelos olhos de estio e fome.

Os dele ou são os meus?

Pela janela passa um pé de vento…

Eu, ouço.

Texto e ilustração de Regina Amorim


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