Destino Desatino

Uma senhora gorducha e atrevida, prepotente em ser quem é, anda a me sombrar e, fala-me a todo momento pressas aos ouvidos.

Seu honroso nome é ampulheta, nem mais nem menos.

É, por direito e determinação sei lá de quem, detentora, em seu bojo, de preciosos grãos arenosos que, cascateando em meus temerosos ouvidos, contabilizam sem dó, tempos de ser, os perdidos e os achados.

Escoar, inexoravelmente, eis o que é por tarefa de vida esta intrometida ampulheta-senhora.

Bem verdade se diga que, alguns jamais a percebem ou escutam.

Razões são muitas para tal descaso ou sabedoria. Mas outros, cônscios da frágil figura, andam a bailar passos incertos com a tal madame.

A mim, está a intrusa a fazer presença muito a miúde e sempre.

Agora mesmo, neste pequenino grão de instante, posso ouví-la a espicaçar-me a percepção e tocar-me o apressar dos pés sobre o amarelo macio de um outono enfolhado.

Atravesso o St. James Park, seguiu-me a atrevidota até Londres, onde estou, encontrada de mim, atarraxada até aos menores ossos, no certo escaninho para todos os meus anseios.

Esta cidade, onde não nasci, mas que, há séculos, nasceu em mim, desabrochada de um amor sem duvidanças ou adendos, linda, snob, inusitada, plena em desafios, envolta em nuvens de açúcar candy. Londres é, por tudo e em tudo, o jeito e tamanho que eu calço e, faz minhas melhores certezas de ser.

London é meu telhado no mundo e, principalmente aqui, não quero ser importunada por birras de tempo.

Isto é que não!

Mas, imaginem o despautério, caminhando agora, rumo à Tate Modern Gallery, na feliz instigação que meus olhos se fartam de beber nesta cidade, bem a meio de cheiros, cores, rumores que me sabem à sinfonia, pesa-me à orelha o pendurar-se de Dona Ampulheta, fazendo frente aos planos e projetos desta senhorinha teimosa e delirante que sou.

Lá vai minha mente alada em seus desejos – Viver aqui parte do ano, fazer um curso de teatro de animação no Covent Garden, beber delícias de requinte e beleza em Primrose Hill, comer sanduíches frios no Hyde Park, ouvir, deleitada, os concertos do Southbank a beira do Thames.

Me atrapalhar toda no metrô, falar um inglês torto, quebrado de esforços, ambições de se entender mais do que ser entendida, tantos planos…

Tanta Londres para tempo tão… tão… tempinho…

Contradições de uma velha em vertiginosas alturas onde, decola assombros, a mente audaciosa, enquanto o corpo, em sessenta e quatro voltas bem dadas, a todo vapor quer sentar âncora a fazer água.

Arritmias de viver, Londres, pulsando com meu coração, eu dentro deles, aproveitando a paisagem.

Quem sou eu? Não sei.

Sei que a senhora gordinha não me pode assustar com sua chuva miúda e constante barulhando em meus ouvidos.

Ao que ela me diz, finjo docilidades, concordâncias.

Abraço a obesa matrona que me assedia a hora, me faço tolerâncias. Ela, meio a contragosto, vai comigo.

Aumento o volume do meu iod. Da ampulheta, já os gritos e reclamos, não ouço.

Quero ver o filme da vida, senão inteiro, pleno da parte que me cabe.

Quero beber até a última gota esta minha teimosa vitalidade, deixar vazio o cálice à mesa de um pub, num fim de tarde nesta minha Londres.

Ao fim da sessão, se as luzes não mais se acenderem para mim, não importa. Em algum insuspeito lugar sempre será Londres e eu começarei tudo de novo.

“Quem não inveja a infeliz/Feliz no seu mundo de cetim/Assim debochando/Da dor, do pecado/Do tempo perdido/ Do jogo acabado…” (Ela Desatinou – Chico Buarque)

Texto e ilustração de Regina Amorim


Uma resposta para “Destino Desatino”

  1. Avatar de admin

    Lindo texto sobre seu amor por Londres! <3

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