O salão de dança de Monsieur Midou ficava numa ruazinha íngreme que, de súbito, se fazia aos olhos de quem caminhasse desavisado pelo bairro decadente.
Seu letreiro, pouco iluminado, mostrava dois grandes pés alados, entrelaçados num passo de dança para além do tempo. Ao olhá-lo, ouvíamos a música e éramos atraídos irresistivelmente, as solas dos pés coçando dentro dos sapatos.
O dono de tal salão era, nem aquele, nem outro, mas Monsieur Midou e isto fazia toda a diferença.
Monsieur Midou era um homenzinho envelhentado, verde inseto que, quando alado, exibia a leveza de uma pluma, o ritmo e a cor que, pelo salão flutuava.
Se porém, dava Midou ordens de silenciar aos seus pés, e, cessava toda a música que sua cabeça guardava, logo encurvava-se pesado, enegrecia-se todo. Seus pés, então, o arrastavam de má vontade, sem finalidade e vida.
Era, enfim, por destino e fado, só e tanto, um dançarino.
Pontualmente às dezoito horas, subia a ladeira pedregulhenta, e, frente ao salão, mãos nervosas, girava a chave à fechadura para, entre risadinhas ferruginosas, ver abrir-se a porta úmida.
Entrava de sorrate.
Um cheiro de cetim puído, mofo e perfume envelhecido penetrava pelo túnel de seus sentidos. O velho sorria – estava em casa.
Abria os postigos das quatro altas janelas verdes, licenças para a morrediça luz da rua fazer-se intrometida. Em reverências quase sagradas, deixava cair o xaile rosa seco que, em entorpecidos abraços, cobria a velha vitrola.
A tal ficava ao melhor canto da parede, castelo medieval banhado de muitas luas. Era de pau marfim com puxadores de bronze em forma de flor e suas portinholas abriam sorrisos imponentes, pontes levadiças a guardar onírico reino.
Quedava-se Monsieur Midou ao centro, pousado sobre o parquê gasto e, passeava pela sala, o olhar estreitado, satisfeito.
Mas, neste dia, ponte de inusitadas travessias se fazia nosso olhar.
A devassá-lo qual bicho escuso, vigiávamos o velho e seu cotidiano e assim, estavam seus segredos e esquisitices prestes a serem desvendados.
Quem era afinal Monsieur Midou? De onde vinham os sons e a algaraviada de seu salão noturno? As risadas, o burburinhar que, ouvidos alcoviteiros, vislumbravam os muitos vizinhos?
Verdade era que nunca viram, os maldizentes, entrar ou sair por aquela porta, pregada de alheias curiosidades, pessoa alguma além, é claro, de Monsieur Midou.
Tudo muito estranho se fazia …
Lá estava ele, o velhote, franzino e circunspecto, alheio ao nosso cismar.
Desde que perdera Zilá, a querida companheira, que embarcara para a morte na canseira das muitas mal iluminadas esquinas, Monsieur Midou dançava só.
Despertava o estremunhado maestro ao leve toque do braço reumático da vitrola e eis que respondia a orquestra em acordes e sopros profundos a vibrarem em disparada como loucos meninos travessos pelas largas bocas de palhinha envernizada, lá e cá.
Era quando o homenzinho, com um mal disfarçado e deleitoso sorriso, enlaçava seu frágil corpo com o braço direito, enquanto erguia em mastro o braço esquerdo e como uma biruta inchada de etésios ventos soltava a pequenina mão, muito branca, ao alto, uma flácida bailarina buscando a invisível mão da parceira.
Dançava Monsieur Midou, dançava… os pés a lixarem o parquê burilado e esculpido no encantamento nostálgico dos dias.
Já agora, luzes acesas despencando descuidadas de um lustre acambetado, falto de tudo, deixavam vislumbrar alegrias de Monsieur Midou a receber seus assíduos frequentadores entre gestos de mãos compassivas e generosas mesuras de corpo para uma sala inexoravelmente vazia.
Então, era doido o homem? Afinal, que se passava?
Mal respondendo, Monsieur Midou faz escorregar um bauzinho de tamanho médio, em madeira um tanto escalavrada, que, qual desastrado e obeso bailarino se estatela bem ao centro do salão sobre desconcertante luz.
Da escuridão incerta a golpear incitante o objeto, agora com a tampa erguida pelas mãos ossudas do velho, saem em veleidades e assombros os inusitados frequentadores do salão.
Pequeninos seres ganhavam vida, fio a fio, ao toque dedo a dedo de Midou que, correspondendo ao falatório animado, com eles se mistura, todos marionetes do grande teatro da vida.
Mente e coração de Monsieur Midou, abrem-se como um mágico bornal, vida emprestando vida, nostalgias tecendo memórias para além do tempo.
Adalgisa, a exuberante cantora se pondo sob os refletores, lamenta uma certa rouquidão e pede ao maestro: – Por favor, mude o tom!
João Paulo e Simone, casal muito moderninho, fazem birra exigindo os últimos sucessos. Ela, tão avançada pernas a mostra, ele, contemporizando acertos.
Murilo e Débora, experientes dançarinos, se não vão ao salão um único dia, se entristecem de fazer dó. Viver é dançar, apregoam aos quatro ventos.
Ela saínha de roda grande, orelhas com balouçantes brincos. Ele muito no seu jeito que não é de vaidades.
Monsieur Midou sorri grande, todo enredado nos fios das muitas vidas.
O som que enche o salão, tráz ao centro da pista de dança, Roberto e Sheila. Requebram uma gafieira de responsabilidade, agarradinhos que só mesmo vendo pra crer.
Jorge e Isabel, anseiam romances. Vieram dos doces anos do foxtrote, buscando-se olhos nos olhos, entregam-se complacentes aos dedos de Monsieur Midou e lá vão pelo salão, fugaz vida bailarina.
Alguém, em voz alta, pede uma valsa: – Uma valsa por favor!
Eis que, um parzinho, recém-casados, desmancham-se em certezas de afeto.
Ela, tímida, segura a cauda, o trêmulo buquê às costas do noivo. Ele, abraça a frágil figurinha em pertencimentos e delicadezas. Movidos, idos e vindos no acalanto da valsa, escondem-se na nuvem do filó feito algodão doce.
Vozes, risos abafados em inconfessáveis e perenes trocas. Monsieur Midou, dançarino por seus pés e por outros tantos, coração desdobrando fios, em vida sobre vida.
É quando, com nosso olhar invasor esbarra, tropeça, desaba Monsieur Midou.
Vê-se nu o homem, seu salão destelhou-se, feriu-se em profana luz, revelou-se.
Encara-nos, confuso.
Seus olhinhos de vagalume, seu silêncio súbito, fazendo calar a orquestra, cessar o ruído de pés dançantes, paralizarem-se os vitais fios prateados das muitas ventanias. Tudo quieto no grande relógio do tempo dito de sonho, mas, realidade fugidia.
Refeito, porém, nos devolve o olhar transbordante de saber-nos, a nós, leitores ou seja lá o que somos em nossas vãs expectativas.
No salão de dança de Monsieur Midou refaz-se o lunar devaneio e volta a música que nossos olhos, ainda tontos, escutam.
Adalgisa vibra sua voz doce num samba canção de prometidas tristezas de amor, vestidas de veludo azul.
Os casais se perdem uns nos outros, escuridão e anseio.
Quem dança agora, ao centro da pista é o idealizado grande amor de toda uma vida, imponderável e indecente em sua pretensão à eternidade.
Ela, saia armada, flores à cinturinha de vespa, sapatos de Cinderela encontrada. Ele, príncipe que enlaça sua princesa qual cobrinha d´água em côncavos e convexos segredados para o muito amor. Cordéis de Monsieur Midou se permitem embaralhamentos, licenciocidades da paixão.
De repente, nós, olhos postos no impossível, sentimos retezarem-se os fios que nos prendem ao incabível desejo – São os ágeis dedos bailarinos de Monsieur Midou, o pequenino inseto verde, que com presteza a zombar, nos faz dançar.
Texto e ilustração de Regina Amorim
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